É verdade camaradas, o Sargento está de volta e no regresso, aproveitamos para colocar no ar um artigo publicado no semanário Expresso, da autoria do Major General Monteiro Valente que há algum tempo atrás passou pela Guarda Nacional Republicana.
I - O REFORÇO DA TENDÊNCIA DE MILITARIZAÇÃO
Em boa hora os constituintes atribuíram ao Presidente da República poderes para travar os excessos legislativos das maiorias parlamentares, mais ainda quando se trata de maioria absoluta de um só partido. Por mais de uma vez tal já aconteceu na vida política nacional. Cavaco Silva utilizou-os agora, novamente, para bloquear o projecto de lei orgânica da GNR, aprovado apenas com os votos do PS.
Segundo a comunicação social, o veto presidencial assentou em questões de fundo, que contendem seriamente com o equilíbrio e a coerência actualmente existentes entre as Forças Armadas e a GNR, nomeadamente pela atribuição do posto de general (quatro estrelas) ao comandante-geral da GNR, colocando-o ao mesmo nível hierárquico do Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas e dos chefes dos três ramos militares, sem um fundamento coerente para alteração na estrutura de comando da Guarda, possibilitando inadequadas equiparações que poderão perverter a necessária complementaridade, concebida na lei, da Guarda perante as Forças Armadas e o eficaz relacionamento entre ambas.
Não deixa de surpreender que o partido que no seu discurso e matriz ideológica mais civilista se afirma seja precisamente aquele que, quando no governo, mais tem reforçado a tendência de militarização da GNR. Assim sucedeu, primeiro, com a atribuição da formação dos seus oficias ao Exército (Academia Militar); depois, com a entrega do comando das suas principais unidades a majores-generais do Exército (oficiais-generais de duas estrelas).
Com o projecto de atribuição da quarta estrela ao seu comandante-geral, com o reforço de três tenentes-generais (generais de três estrelas) no comando-geral da Guarda e com a reestruturação desta segundo o modelo do Exército, reforça-se essa tendência, apenas faltando transferi-la para a dependência orgânica do Ministro da Defesa Nacional para fazer da Guarda um ramo das FA para a segurança interna, um modelo apenas existente em Itália - curiosamente (as voltas que a política dá!) um projecto muito acarinhado por Paulo Portas enquanto ministro da Defesa Nacional.
Ou seja, Portugal inspira-se num modelo que é já excepção na Europa e não no que é a regra mais comum. Para demonstrar a incoerência de tal reforma bastará dizer que, se o projecto fosse aprovado, a GNR passaria a ser em toda a União Europeia a única força de segurança do tipo "gendarmerie", não enquadrada de modo directo na estrutura de defesa nacional, comandada por um oficial-general de quatro estrelas. (Quem disse que Portugal é um país pequeno?) Aliás, entre todos os Estados-membros, a GNR é já a única que mantém um enquadramento hierárquico e funcional exclusivamente militar, entre todas as forças de segurança congéneres.
Outro aspecto que surpreende no projecto, particularmente num contexto de anunciada intenção de racionalização da administração central do Estado, é que as funções do actual Chefe do Estado-Maior da Guarda (major-general) serão redistribuídas por um tenente-general e três majores-generais. (Quem falou em diminuição das despesas públicas?).
Com o projecto de lei orgânica, o PS perdeu a oportunidade de realizar a reforma estrutural há muito necessária à Guarda, no sentido da sua modernização e conformação às "gendarmeries" da União Europeia, onde a tendência é para uma direcção civil, pois a democracia é por essência um regime civilista. Enfim, mais um aspecto da permanência de mentalidades do passado, mesmo entre aqueles que se afirmam progressistas.
Bastaria ter sabido adaptar o modelo da vizinha "Guardia Civil" espanhola (que não consta ser menos militar que a GNR nem menos eficiente por isso), com as vantagens de se poder assim também melhorar a cada vez mais necessária colaboração policial entre ambas as forças. Há muito que o seu comando foi transformado numa direcção nacional, com um director nacional, civil, um subdirector nacional, comandante operacional, major-general dos quadros militares da Guarda Civil, e dois outros subdirectores civis para os recursos humanos e administrativos.
Ou seja, uma organização superior mista civil-militar menos pesada, apesar de se tratar de uma força com muito maiores efectivos e mais amplas competências, num país com problemas de segurança bastante mais graves que Portugal. Note-se o pormenor de o mais elevado escalão militar da "Guardia Civil" ser um major-general, quando em Portugal é já um tenente-general (três estrelas) e se pretender agora graduá-lo em general (quatro estrelas).
A nossa ancestral mania das grandezas!
Oxalá a reapreciação do diploma permita introduzir na discussão a razoabilidade que faltou na sessão legislativa anterior, porventura pela proximidade das férias parlamentares. Portugal precisa de uma melhor GNR, mas de uma Guarda ao serviço da democracia e da segurança dos cidadãos e não de inaceitáveis disputas corporativas...muito menos de eventuais projectos de ambição pessoal. Bom seria que os deputados tivessem aproveitado as férias para se informarem sobre os graves confrontos que, nos anos vinte do século passado, opuseram o Exército à GNR, dilacerando a já frágil I República, precisamente por se haver pretendido sobrepor a Guarda ao próprio Exército.
II - MAIOR CENTRALISMO, MENOR PROXIMIDADE AOS CIDADÃOSUm segundo aspecto marcante da reforma da Guarda Nacional Republicana, vetada oportunamente pelo Presidente da República, é o do reforço do centralismo. O projecto prevê a extinção dos comandos regionais (brigadas territoriais), passando os grupos (comandos distritais) a depender directamente do comando-geral.
A organização superior da Guarda contempla actualmente o comandante-geral (tenente-general, oficial-general de três estrelas), e o 2 º comandante-geral, o chefe de estado-maior e o inspector-geral (os três com o posto de major-general, oficial-general de duas estrelas). Destes quatro oficiais-generais depende toda a direcção e supervisão das actividades da Guarda, descentralizada do antecedente em quatro comandos regionais - Lisboa, Norte, Centro, Alentejo e Algarve -, nas unidades especiais (brigadas fiscal e de trânsito), de reserva (regimentos de infantaria e cavalaria) e de instrução (escola prática).
O projecto vetado prevê a graduação do comandante-geral em general (oficial-general de quatro estrelas, posto igual ao do Chefe do Estado-Maior-General das Forças Armadas e dos chefes dos ramos militares), a passagem do 2 º comandante-geral, do inspector e do chefe do estado-maior (este com a nova designação de comandante do comando operacional) a tenentes-generais, o último dos quais será ainda coadjuvado por mais um major-general. A estrutura superior de comando da Guarda será também desdobrada em três órgãos funcionais, sendo um o já referido comando operacional, o segundo o comando da administração dos recursos humanos e o terceiro o comando da doutrina e formação, os dois últimos dirigidos por majores-generais. (É estranho que, não tendo a lei sido publicada, o 2 º comandante-geral seja actualmente já um tenente-general, sem cabimento orgânico. Política de facto consumado?).
Em resumo, um total de sete oficiais-generais (1 Gen, 3 Ten-Gen, 3 Maj-Gen) em substituição dos anteriores quatro (1 Ten-Gen, 3 Maj-Gen). Quem falou em racionalização da administração central? Mas a reforma não ficará por aqui. Os dois actuais regimentos (de infantaria e cavalaria), sedeados em Lisboa, mudarão de nome, para "unidade de intervenção" e "unidade de segurança e honras de Estado", passando a ser comandadas por...majores-generais!
Em Portugal, os majores-generais comandam grandes unidades do exército tipo brigada (com um efectivo médio da ordem 2500 homens), e na generalidade dos países da NATO grandes unidades de escalão divisão, muito superiores em efectivos (em média com 3 a 5 brigadas). Com a reforma projectada Portugal passará a ter majores-generais a comandar regimentos (unidades de cerca de 1.000 militares).
Onde se foi copiar este modelo? Nem em África tal sucede! Mas em Portugal tal parece que irá ser possível! Simplesmente ridículo, mesmo escandaloso e ofensivo para os oficiais-generais. A não ser que a ideia seja transformar em brigadas os actuais regimentos. Então acautelem-se os cidadãos pois poucos efectivos sobrarão para o serviço policial territorial...e, em caso de ocorrências graves, terão de ficar à espera que cheguem de Lisboa. Chama-se a isto aumentar a prontidão e a eficácia! Não deixa de surpreender que, no passado, o PS sempre tenha criticado o número excessivo de elementos concentrados no comando-geral da Guarda e nas unidades e serviços sedeados em Lisboa - uma crítica aliás comum à generalidade dos partidos -, e que agora venha propor uma reforma que vai precisamente em sentido contrário.
Um sinal dos tempos...destes tempos em que a incoerência vai sendo a regra em política. Em suma, a ser aprovada a reforma, eliminar-se-ão quatro majores-generais comandantes regionais, para dois irem comandar regimentos em Lisboa e dois outros reforçar um já sobredimensionado comando-geral.
Até parece que o que está em causa é apenas manter o número total de onze oficiais-generais da Guarda (com os comandantes da escola da Guarda e da unidade costeira incluídos). Note-se que até 1999 o número total de oficiais-generais na Guarda era apenas de quatro, e desde então os seus efectivos globais não sofreram alteração significativa. Entretanto, os grupos territoriais (distritais) - actualmente de comando de tenentes-coronéis - passarão a ser comandados por coronéis ou tenentes-coronéis e os destacamento - actualmente de comando de capitães - por majores ou capitães.
Enfim, mais um aumento significativo do número de oficiais superiores depois de em 2002 (Governo de António Guterres - Decreto-Lei n º 15/2002) terem sido já aumentados em 55% (de 208 para 324). Mais uma vez uma questão de racionalização! O resultado final da reforma será, inevitavelmente, o aumento do centralismo e do afastamento dos comandos da Guarda relativamente aos efectivos em serviço policial e, sobretudo, aos cidadãos, e um reforço da autoridade (e do autoritarismo) sobre a segurança. Convirá talvez lembrar ao PS que em democracia o excesso de autoridade mata a liberdade. A memória dos homens é mesmo curta!
III - Mais Segurança ou Mais Insegurança?
O projecto de reforma da GNR parece ter sido inspirado no modelo da última reorganização do Exército e também no modelo actual da Polícia de Segurança Pública. No que respeita ao Exército, o aspecto mais visível da sua reorganização foi o da eliminação das regiões militares, ao mesmo tempo que se aumentaram as competências do estado-maior e dos comandos centrais.
Tratou-se de uma reestruturação discutível, mas coerente com a anterior extinção do serviço militar obrigatório e com a consequente transformação do Exército de um modelo de instrução/mobilização para um modelo operacional, com expressão mais significativa na redução do número de unidades e na maior concentração dos efectivos, com vista a aumentar a sua capacidade de projecção de forças para o exterior. No caso da PSP, o seu dispositivo territorial não contempla comandos de nível regional, estando os comandos distritais directamente dependentes da direcção nacional.
É o que se pretende também fazer agora na GNR. Como já se referiu, um dos aspectos mais salientes da reforma da GNR, de novo em discussão na Assembleia da República, é o da extinção dos comandos regionais, conhecidos por comandos de brigada territorial - Lisboa, Norte, Centro e Alentejo e Algarve. Contudo, quer o modelo de Exército quer o da PSP pouco têm a ver com o da Guarda e as suas atribuições. A missão desta apoia-se, desde a sua criação, num dispositivo que assenta numa densa quadrícula territorial de base concelhia - em alguns casos até de freguesia(s) -, por forma a assegurar um efectivo policiamento de proximidade em todo o território nacional, o que não acontece com a PSP, sedeada apenas nos principais centros urbanos.
A forte densidade do dispositivo da GNR (postos, destacamentos, grupos) está na origem da criação dos comandos intermédios de âmbito regional (actualmente brigadas, no passado batalhões), numa lógica de desconcentração e descentralização de competências do comandante-geral da Guarda. Por outro lado, as múltiplas atribuições desta (policia geral, investigação criminal, trânsito, fiscal, ambiente, protecção e socorro, etc.,) recomendam a existência daqueles comandos, com um papel principal de coordenação, articulação e integração de actividades, o que dificilmente se consegue ao nível local, por não se encontrarem representadas todas as valências policiais, e muito menos a partir do comando-geral em Lisboa, excessivamente afastado da realidade concreta.
Este é o modelo seguido nas outras "gendarmeries", nomeadamente na vizinha "Guardia Civil", com os comandos de zona. A estreita colaboração com esta, já bastante consolidada - que se traduz em frequentes acções conjuntas nas áreas fronteiriças e em reuniões periódicas entre comandos do mesmo nível -, ficará também prejudicada com a eliminação das brigadas.
Enfim, não se deve tratar de forma igual o que é diferente. Quem conhece a GNR sabe bem que a principal crítica que os militares colocados nos postos fazem ao comando-geral é a do seu grande distanciamento relativamente aos problemas reais, crítica compreensível considerando os mais de meio milhar de postos existentes e a multiplicidade de situações concretas que se colocam na sua rotina diária.
O que tem valido é que normalmente não ficam à espera de ordens do comando-geral. A extinção dos comandos de brigada apenas irá agravar esta realidade, com prejuízo evidente, sobretudo, para a eficácia e oportunidade da acção policial, contrariando o essencial da lógica do policiamento de proximidade de que o PS fez bandeira no passado. Não será também por esta forma que se economizarão recursos. Mais que os que sobrarão dos quatro comandos de brigada a extinguir serão os que se gastarão com o reforço dos dezoito comandos distritais e com a criação dos três novos comandos funcionais em Lisboa. A racionalização dos recursos é fundamental, mas existem outras vias para o conseguir efectivamente e não apenas na aparência. Outra disfunção é a que respeita aos comandos das unidades.
Atribui-se o comando de major-general à nova unidade de controlo costeiro, em função da sua missão em toda a extensão da costa e no mar territorial; mas as duas outras unidades de âmbito nacional - fiscal e de trânsito - passarão a ser de comando de coronel (actualmente são comandadas por majores-generais). Em contrapartida, e como já se referiu, o comando de duas unidades de escalão regimento em Lisboa passará a ser de major-general. Qual a razão para esta incoerência?Será que apenas se pretendeu justificar o lugar aos sete majores-generais?Ou será que na GNR o posto de coronel é equivalente ao de major-general? O país precisa de forças de polícia mais eficazes, pois a segurança é uma condição essencial ao exercício da liberdade. A eficácia depende de vários factores, um dos quais é, necessariamente, um dispositivo que garanta proximidade aos cidadãos na prevenção e prontidão, versatilidade e capacidade na intervenção. É isso que os portugueses têm o direito de exigir da reforma da GNR! Chega de protagonismos!
Monteiro Valente, Major-general (R)