21.11.06

Revisão das Carreiras e Remunerações

Conforme tem sido amplamente referido pela imprensa, um dos temas do dia é a revisão das carreiras e remunerações da Administração Pública.
Estando disponível um documento designado por vínculos, carreiras e remunerações na Administração Pública – Diagnóstico e Perspectivas de Evolução, cujo resumo se transcreve.

I
Traços Gerais

Aponta-se como caminho:

  1. Reorganização, reestruturação e redimensionamento do pessoal;
  2. Diversificação dos tipos contratuais (publicísticos ou privatísticos, temporários ou permanentes, a tempo completo ou parcial), com a correspondente multiplicação dos regimes aplicáveis aos trabalhadores da Administração Pública;
  3. Alteração ou eliminação de alguns dos elementos do modelo de carreira, tomando como referência as condições de trabalho no sector privado.
  4. Recurso a sistemas de gestão do desempenho.

Afirmando-se que a evolução verificada em Portugal contrasta com esta orientação, pois:

  1. Terá ocorrido um acréscimo de efectivos sem justificação visível, numa demonstração concludente da ineficácia dos mecanismos criados para limitar o crescimento dos empregos públicos que no grupo da Defesa Nacional, Administração Interna e Justiça, se traduziu num crescimento de 1,8% ao ano.
  2. Grande concentração de efectivos nos sectores da Educação/ Ensino Superior/ Ciência/Saúde/ Justiça/ Defesa/ Administração Interna, os quais dispunham em 2005 de cerca de 90% do total de efectivos ao serviço da Administração Estadual.
  3. Baixa qualificação técnica dos efectivos.
  4. Escasso recurso a mecanismos de outsourcing.
  5. Forte aumento do peso das despesas com o pessoal, inversamente à tendência verificada nos países da União Europeia.
  6. Elevada percentagem da receita de impostos afecta à despesa com o pessoal da Administração Pública.
  7. Significativo crescimento da despesa média por efectivo.

II
Regime de Emprego

A Administração Pública portuguesa assenta predominantemente ainda hoje em funcionários admitidos por acto de nomeação, com um estatuto típico do modelo tradicional de carreira.

No entanto, e por força das alterações introduzidas desde 1989 nas relações jurídicas de emprego público, tais funcionários coexistem com um número progressivamente mais elevado de trabalhadores com contrato administrativo de provimento ou com contrato individual de trabalho, em modalidades diversas.

Pretendendo-se:

  1. Unificação da forma de constituição dos vínculos publicísticos de emprego público, recorrendo sempre ao esquema do contrato.
  2. Estabelecimento de um conjunto unificado de princípios e regras jurídicas aplicáveis a todos os trabalhadores ao serviço de entidades públicas.
  3. Identificação, a partir de critérios racionais e coerentes, do núcleo de funções relativamente às quais se justifica a institucionalização de regimes mais próximos do modelo estatutário puro.
  4. Consagração de um regime comum ou padrão, aproximado do regime laboral comum, e de um regime especial, mais próximo do modelo estatutário.
  5. Aproximação das condições concretas de trabalho vigentes no regime estatutário e no sector privado (horários de trabalho, faltas, férias, etc.).
  6. Aprofundamento da negociação colectiva na Administração Pública.
  7. Reforço das competências de gestão e efectiva institucionalização de práticas eficazes de responsabilização dos dirigentes.
  8. Ponderação do âmbito de aplicação da reforma, tendo presente que:
    a. Uma intervenção que não se faça sentir nos sectores da Educação, Ensino Superior e Saúde não produzirá efeitos relevantes à escala global e não terá significado em termos macroeconómicos.
    b. A aplicação apenas aos novos trabalhadores reduz drasticamente o alcance da reforma, uma vez que não é previsível que as admissões venham a cifrar-se em valores elevados nos próximos anos.
    c. Um âmbito de aplicação mais ampla implica que se encontre no quadro constitucional uma solução que concilie expectativas legítimas e exigências de interesse público.
    d. Há custos elevados resultantes da coexistência num mesmo serviço de trabalhadores sujeitos a regimes jurídicos diversos.


III
Regime de Carreiras

Os trabalhadores inseridos num modelo de carreira, uma vez recrutados, são inseridos na base de um conjunto hierarquizado de categorias, através das quais se define o conteúdo das suas funções e o percurso profissional garantido numa determinada escala salarial pré-definida, assim:

  1. Na Administração Pública portuguesa, as várias categorias de uma carreira não apresentam geralmente uma diferenciação funcional, pelo que a evolução profissional se faz para níveis salariais mais elevados sem alteração das responsabilidades e tarefas desenvolvidas.
  2. Essa evolução baseia-se, aliás, mais na antiguidade ou nos conhecimentos teóricos do que no mérito do desempenho, com os automatismos a tomarem o lugar da responsabilização dos dirigentes na gestão das carreiras.
  3. Por outro lado, sucede com frequência que carreiras profissionais autónomas não apresentam qualquer diferenciação funcional entre si, o que contribui notavelmente para o seu número excessivo: pelo menos, 653 carreiras de regime geral, a que se devem adicionar 119 do regime especial e dos corpos especiais. Semelhante proliferação traduz-se em dificuldades acrescidas de gestão, em constrangimentos à mobilidade dos funcionários (que não circulam com facilidade entre posições intermédias de carreiras diferentes) e na protecção injustificada de grupos profissionais específicos.
  4. Outro factor crítico é o carácter rígido, moroso e burocratizado dos procedimentos de recrutamento e promoção. A duração média dos procedimentos atinge os 280 dias, o recrutamento depende excessivamente das habilitações académicas e do saber retórico, desatendendo às necessidades específicas do serviço, e as regras de acesso não comportam a flexibilidade necessária para proporcionar carreiras rápidas aos que demonstrarem maiores capacidades.

    Preconiza-se:

  1. Conveniência em ponderar uma passagem faseada ao modelo de posto de trabalho – ou a introdução de alguns dos seus elementos - , como resultado de uma (eventual) opção pelo contrato de direito privado como forma de vínculo típica da maioria dos trabalhadores da Administração Pública.
  2. Consagração de posições remuneratórias diversas dentro de um mesmo posto (no caso de opção pelo modelo do posto de trabalho), garantindo perspectivas de melhoria a quem neles se mantenha por largos períodos com bons resultados ou uma actualização salarial diferenciada em função do desempenho (sem automatismos).
  3. Redução e diferenciação funcional efectiva das carreiras e categorias existentes no âmbito da reserva estatutária, exigindo-se que a criação ou a subsistência de uma carreira assente numa justificação substantiva, aferida por mecanismos de análise de funções.
  4. Redução drástica, no mesmo âmbito, do número de posições remuneratórias horizontais e dos automatismos da evolução, reformulando as regras de acesso para relevar critérios de gestão, valorizar o reconhecimento do mérito, facilitar a avaliação das aptidões, promover a mobilidade do exterior das carreiras e consagrar velocidades diferenciadas de evolução para os mais capazes.
  5. Ainda no âmbito da reserva estatutária, desformalização e desburocratização dos procedimentos de acesso, sem prejuízo da imparcialidade e transparência.
  6. Estabelecimento de critérios e plafonds financeiros para promoções.
  7. Reconfiguração dos procedimentos de recrutamento para as carreiras ou postos de trabalho, no sentido de:
    a. Conferir maior celeridade e simplicidade à selecção.
    b.Investir mais fortemente na definição de perfis de competência e na avaliação de aptidões.
    c. Promover a modernização e adequação dos métodos de selecção a utilizar.
    d. Consagrar a possibilidade de atribuir as operações de recrutamento a entidades especializadas.
    e. Facilitar a constituição de reservas de recrutamento.
  8. Alteração do regime de quadros de pessoal, tanto no regime de carreiras como de contrato individual de trabalho, flexibilizando os mecanismos de avaliação e actualização de necessidades e reforçando as vinculações financeiras.

IV
Sistema Remuneratório


O actual sistema retributivo da função pública (NSR) apresenta como elementos estruturantes remunerações base assentes em escalas indiciárias, construídas de modo a que a alteração do valor quantitativo do índice 100 de uma dessas escalas provoque automaticamente a alteração proporcional dos valores de todos os índices, sem possibilidade de discriminar, positiva ou negativamente, a remuneração de cada funcionário ou agente.


O NSR foi originalmente concebido de acordo com um princípio de equidade interna, visando garantir a harmonia remuneratória entre cargos no âmbito da Administração Pública e salvaguardar a relação de proporcionalidade entre as responsabilidades de cada cargo e as correspondentes remunerações.


Todavia, foram posteriormente introduzidos elementos perturbadores, como alterações nas escalas indiciárias, acréscimos salariais não uniformes, acréscimos remuneratórios excepcionais e revisões de carreiras integradas em corpos especiais, tudo redundando no achatamento do leque salarial, na perda de posição relativa das carreiras de regime geral e dos cargos dirigentes (compensada com suplementos alheios à lógica do sistema) e, em última análise, no desvirtuamento generalizado do modelo inicial.


Uma análise mais pormenorizada do funcionamento concreto do NSR revela o seguinte:

  1. As diversas carreiras e categorias nem sempre aparecem remuneradas de acordo com a sua complexidade funcional.
  2. Em várias carreiras o leque salarial diminuiu entre 1989 e 2005 – foi o caso dos militares das forças armadas (-1,4); dos polícias de segurança pública (-0,6); do pessoal técnico-profissional (-0,4) dos diplomatas (-0,3) e dos oficiais de justiça (-0,3).
  3. A progressão salarial de algumas categorias profissionais está muito concentrada no início da carreira, verificando-se com frequência a falta de incentivos no final da vida activa (os magistrados auferem 80% da remuneração máxima após 13 anos de carreira, os médicos, após 14 anos, e os técnicos superiores, após 15 anos).
  4. As escalas salariais da progressão em escalões constituem um factor de valorização da antiguidade.
  5. Os suplementos, visando compensar particularidades específicas da prestação do trabalho (disponibilidade, risco, trabalho nocturno, despesas efectuadas por motivos de serviço, etc.), não se orientam para a individualização remuneratória e têm sido utilizados frequentemente, quer os de natureza permanente, quer os de natureza transitória, com o objectivo exclusivo de obter acréscimos à remuneração base ou restaurar a equidade interna perturbada por intervenções casuísticas noutros cargos ou carreiras.
  6. Nalguns casos, a especificidade da prestação de trabalho dos funcionários integrados em carreiras de regime especial ou em corpos especiais tem sido objecto de uma compensação dupla, cumulando-se remunerações base mais elevadas com suplementos de natureza permanente.
  7. Os suplementos têm um peso significativo na estrutura orçamental das despesas com pessoal dos vários sectores - entre 19 e 48% das remunerações certas e permanentes - e podem representar 23% da remuneração base de certas carreiras (os dirigentes, técnicos, oficiais e agentes de polícia, técnicos verificadores aduaneiros e pessoal operário e auxiliar são alguns dos casos onde os suplementos apresentam maior expressão).
  8. O sistema indiciário não comporta a flexibilidade necessária para diferenciar remuneratoriamente, num dado momento, carreiras cuja relevância para as políticas públicas prosseguidas se tenha alterado desde o momento da respectiva criação.
  9. Salvo situações isoladas, não se encontra instituído, a nível geral ou particular, um verdadeiro sistema de remuneração associada ao desempenho: existem alguns casos em que pode ser fixada uma remuneração variável, mas sem uma clara conexão com os resultados atingidos, nomeadamente no plano individual.
  10. Pode assim concluir-se que o actual sistema retributivo, dadas as suas próprias limitações e as intervenções legislativas subsequentes, não garante hoje nem a equidade interna nem a externa.
  11. Por fim, e no que respeita às remunerações do pessoal contratado em regime de contrato individual de trabalho – onde a individualização remuneratória é uma possibilidade real – verifica-se genericamente uma tendência de alinhamento pelas remunerações do pessoal nomeado.

Preconiza-se

  1. Consagração de um modelo que equilibre a previsibilidade e a equidade interna com a flexibilidade e a capacidade de adaptação à alteração das circunstâncias (v. g., a modificação da importância relativa de certas carreiras para a prossecução de políticas públicas ou a alteração da oferta ou da procura de certas profissões no mercado).
  2. Abertura do leque salarial de muitas carreiras, para neutralizar o actual prémio sobre o valor de mercado no início da vida profissional e a sua diminuição nas fases derradeiras.
  3. Eliminação dos automatismos na evolução salarial.
  4. Criação de mecanismos específicos que permitam à Administração concorrer no mercado por profissionais altamente qualificados em sectores estratégicos de actividade.
  5. Revisão dos critérios de atribuição dos suplementos remuneratórios, especialmente no referente aos corpos especiais.
  6. Previsão de acréscimos remuneratórios pelos resultados do desempenho, individual e/ou ao nível do serviço, preferencialmente sob a forma de prémios com vigência anual e em função de plafonds financeiros estabelecidos.
  7. Possibilidade de estabelecer aumentos salariais diferenciados (de nulos a positivos) em função dos resultados do desempenho.

V
Síntese final

O volume da despesa com o pessoal da Administração Pública portuguesa, atenta a dimensão desta e o nível de resultados obtidos, revela a existência de um sério problema de eficiência na afectação de recursos, evidenciado na comparação com países de idêntica dimensão da União Europeia.


Importa assim questionar se, e em que medida, o regime jurídico de vínculos, carreiras e remunerações dos trabalhadores ao serviço da Administração Pública influencia negativamente tais níveis de eficiência.


A análise desenvolvida por esta Comissão sobre dados previamente disponíveis e sobre outros especificamente recolhidos apontou a este respeito como factores críticos:

  1. O carácter vitalício dos vínculos de nomeação, que abrangem a grande maioria do pessoal da Administração;
  2. A natureza estatutária e tendencialmente fechada das carreiras profissionais e respectiva evolução;
  3. As limitações e os automatismos do sistema remuneratório, praticamente impermeável aos níveis de desempenho.

Estas características do modelo vigente de emprego público prejudicam significativamente a capacidade gestionária dos dirigentes e a flexibilidade necessária à reorganização administrativa e à gestão por objectivos. E, consequentemente, impedem a consolidação financeira e a melhoria da qualidade do serviço.

Identificados os problemas e ponderadas as opções, a Comissão destaca de entre as linhas de evolução preconizadas as seguintes orientações genéricas:

  1. Limitação das garantias e restrições próprias do modelo estatutário de emprego público a um núcleo reduzido de funções, adoptando para todas as restantes modelos próximos do regime laboral comum.
  2. Estabelecimento de um regime jurídico comum aplicável a todos os trabalhadores ao serviço da Administração Pública, independentemente da natureza das normas que regulam os restantes aspectos da sua relação laboral, destinado a garantir a prossecução imparcial do interesse público, no respeito da lei e das regras de boa administração.
  3. Flexibilização do conteúdo e das regras de gestão dos vínculos laborais, mesmo no âmbito do regime estatutário.
  4. Reformulação das regras estatutárias de ingresso e acesso nas carreiras, valorização do reconhecimento do mérito, estímulo à avaliação das aptidões, promoção da mobilidade do exterior das carreiras e consagração de velocidades diferenciadas de evolução nas carreiras para os mais capazes.
  5. Melhoria dos procedimentos de selecção no sentido de uma maior celeridade e flexibilidade, com salvaguarda dos princípios da imparcialidade e transparência.
  6. Fixação de critérios e de limites financeiros para a atribuição de promoções, suplementos, prémios e actualizações salariais.
  7. Eliminação dos automatismos na evolução salarial.
  8. Aumento dos leques salariais e flexibilização das grelhas salariais em função dos objectivos estratégicos e das condições de mercado.
  9. Introdução de critérios de avaliação de desempenho na determinação das remunerações.
  10. Revisão dos critérios de atribuição dos suplementos remuneratórios.

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