“É muito difícil lidar com o primarismo." O balanço de cerca de um ano em funções não sorri a Clemente Lima, o juiz que dirige a Inspecção-Geral da Administração Interna (IGAI). Há coisas, diz o inspector, em que "já se devia ter evoluído. Deviam criar-se anticorpos em relação aos sentimentos mais primários". Exemplifica com o facto de, cada vez que se fala de mortes causadas por polícias, se contrapor a contabilidade dos polícias mortos. "Estas coisas não podem ser promiscuídas, sob pena de se regressar ao xerifado que por aí campeia."
Foi no seu gabinete, pela televisão, que o inspector assistiu à audição parlamentar ao ministro que o tutela, audição para a qual António Costa levou as chefias das corporações e na qual juntou, na mesma frase, os "civis" mortos e os polícias mortos. Clemente Lima não comenta o facto de a sua presença, como responsável pela fiscalização dos abusos policiais que era suposto estarem em causa na audição, não ter sido solicitada. Mas reconhece sentir-se "isolado". E que "teria algumas coisas para lá dizer".
Em vez disso, o inspector ouviu. E tomou notas. Anotou, por exemplo, que o ministro revelou números, respeitantes aos disparos efectuados pela PSP e GNR entre 2002 e 2006, que nunca lhe tinham sido fornecidos, e que considera úteis para o trabalho da IGAI. "Vou ter de pedir esses elementos, estranhando que não me tenham sido remetidos." Quanto ao motivo da omissão, hesita. "Acredito que aqueles números nunca tivessem sido compilados antes. O que é de arrepiar. É arrepiante que as polícias nunca tenham feito esse trabalho de análise. Mas, como diz o poeta, 'assim tudo - até que não'."
Do mesmo estado de coisas fará parte o discurso do representante da GNR na audição parlamentar. "Registei que o general Mourato Cabrita considera que um militar fardado não pode admitir ser desrespeitado porque representa o Estado. Ora a autoridade do Estado não se defende a tiro! É a ideia da arma como fonte de autoridade. Isso ainda está presente nas polícias portuguesas. Assusta-me, já se devia ter evoluído."
Uma falta de evolução com a qual Clemente Lima se diz frustado e que parece indiciar que dez anos de IGAI não fizeram, afinal, uma diferença tão grande como se esperaria. Porquê? O inspector faz silêncio. "Os resultados são preocupantes. Tenho a noção de que tenho pouca capacidade para passar do discurso à militância sem a colaboração das corporações. E as reacções das corporações não são, francamente, positivas. E tenho sido cauteloso, tenho tentado ser."De facto, a linguagem do inspector parece ter endurecido nas últimas semanas, desde que, após os incidentes com longas perseguições automóveis e disparos que envolveram a GNR, na zona do Porto, no espaço de poucos dias, veio a público explicitar o seu entendimento da legalidade, afirmando que, quando está em causa um pequeno delito, a polícia deve preferir deixar fugir os delinquentes a persistir em perseguições perigosas. Clemente Lima indiciava assim a sua opinião sobre os incidentes: se via as perseguições como injustificadas, em princípio não iria avalizar os tiros que as finalizaram.
Mas é a primeira vez que afirma claramente aquilo que se intuía: as polícias não gostam de colaborar com quem as fiscaliza. Não gostam de ser escrutinadas, de ver as suas práticas debatidas e analisadas e eventualmente modificadas. Clemente Lima só vê uma saída: apostar na formação. Mas não desconsidera, pelo contrário, a importância do discurso: "Percebo que se faça o discurso compensatório, que se diga que a autoridade não pode ser desconsiderada. Mas justificar com isso certas ocorrências demonstra confusão sobre o objectivo e a natureza das instituições que é muito preocupante nestes dirigentes. E choca-me que, ditas estas coisas, saia tudo com palmadas nas costas."
DN on line 28/10/06
Foi no seu gabinete, pela televisão, que o inspector assistiu à audição parlamentar ao ministro que o tutela, audição para a qual António Costa levou as chefias das corporações e na qual juntou, na mesma frase, os "civis" mortos e os polícias mortos. Clemente Lima não comenta o facto de a sua presença, como responsável pela fiscalização dos abusos policiais que era suposto estarem em causa na audição, não ter sido solicitada. Mas reconhece sentir-se "isolado". E que "teria algumas coisas para lá dizer".
Em vez disso, o inspector ouviu. E tomou notas. Anotou, por exemplo, que o ministro revelou números, respeitantes aos disparos efectuados pela PSP e GNR entre 2002 e 2006, que nunca lhe tinham sido fornecidos, e que considera úteis para o trabalho da IGAI. "Vou ter de pedir esses elementos, estranhando que não me tenham sido remetidos." Quanto ao motivo da omissão, hesita. "Acredito que aqueles números nunca tivessem sido compilados antes. O que é de arrepiar. É arrepiante que as polícias nunca tenham feito esse trabalho de análise. Mas, como diz o poeta, 'assim tudo - até que não'."
Do mesmo estado de coisas fará parte o discurso do representante da GNR na audição parlamentar. "Registei que o general Mourato Cabrita considera que um militar fardado não pode admitir ser desrespeitado porque representa o Estado. Ora a autoridade do Estado não se defende a tiro! É a ideia da arma como fonte de autoridade. Isso ainda está presente nas polícias portuguesas. Assusta-me, já se devia ter evoluído."
Uma falta de evolução com a qual Clemente Lima se diz frustado e que parece indiciar que dez anos de IGAI não fizeram, afinal, uma diferença tão grande como se esperaria. Porquê? O inspector faz silêncio. "Os resultados são preocupantes. Tenho a noção de que tenho pouca capacidade para passar do discurso à militância sem a colaboração das corporações. E as reacções das corporações não são, francamente, positivas. E tenho sido cauteloso, tenho tentado ser."De facto, a linguagem do inspector parece ter endurecido nas últimas semanas, desde que, após os incidentes com longas perseguições automóveis e disparos que envolveram a GNR, na zona do Porto, no espaço de poucos dias, veio a público explicitar o seu entendimento da legalidade, afirmando que, quando está em causa um pequeno delito, a polícia deve preferir deixar fugir os delinquentes a persistir em perseguições perigosas. Clemente Lima indiciava assim a sua opinião sobre os incidentes: se via as perseguições como injustificadas, em princípio não iria avalizar os tiros que as finalizaram.
Mas é a primeira vez que afirma claramente aquilo que se intuía: as polícias não gostam de colaborar com quem as fiscaliza. Não gostam de ser escrutinadas, de ver as suas práticas debatidas e analisadas e eventualmente modificadas. Clemente Lima só vê uma saída: apostar na formação. Mas não desconsidera, pelo contrário, a importância do discurso: "Percebo que se faça o discurso compensatório, que se diga que a autoridade não pode ser desconsiderada. Mas justificar com isso certas ocorrências demonstra confusão sobre o objectivo e a natureza das instituições que é muito preocupante nestes dirigentes. E choca-me que, ditas estas coisas, saia tudo com palmadas nas costas."
DN on line 28/10/06
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